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Valter Lenine Fernandes, que também leciona na UFRGS, assumirá cargo de diretor do IFSul em Sapiranga. Em entrevista, ele conta sobre seu processo de formação e sua carreira

A partir de julho, o Rio Grande do Sul (RS) terá seu primeiro docente surdo dirigindo uma Instituição de Ensino Superior. O professor Valter Lenine Fernandes ocupará a posição quando assumir o cargo de diretor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul) em Sapiranga, no Vale do Sinos.

Ele já fez história antes – foi o primeiro surdo a defender uma tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), em 2018. A nova vitória é uma conquista para o Estado e para o país, sendo um dos primeiros surdos a assumir a gestão de uma instituição da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.

O docente é surdo oralizado – ou seja, se expressa por voz, e não por sinais. Barreiras de acessibilidade, problemas de inclusão em diferentes áreas e o preconceito refletem a falta de conscientização e de oportunidades, conforme Valter. Por isso, o historiador escolheu dedicar seus esforços para garantir educação de qualidade para as pessoas com deficiência.

Divulgado em maio, recorte do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que o Brasil tinha, em 2022, 14,4 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. Conforme a pesquisa, 21,3% das pessoas de 15 anos ou mais com alguma deficiência eram analfabetas. O levantamento evidencia a marginalização deste grupo.

Filho de uma mãe surda e um pai com deficiência intelectual, Valter nasceu com perda auditiva bilateral. Com isso, não escuta quase nada. Ele conta que o apoio das pessoas foi fundamental para chegar nesse lugar.

Em 2018, foi aprovado por meio da política de cotas para o cargo de professor no IFSul. Desde então, vem atuando na luta por direitos e inclusão de pessoas com deficiência no RS.

Ele ministrou cursos, ajudou a aprovar normas institucionais de acessibilidade e a fortalecer políticas públicas, tornando-se referência nesse campo. Valter também leciona no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), contribuindo para que mais pessoas com deficiência possam se enxergar nos espaços da ciência, como futuros mestres e doutores.

No campus de Sapiranga do IFSul, onde ele atua, os resultados já são notórios. Quando chegou, havia pouca acessibilidade e poucos estudantes com deficiência. Sua presença contribuiu para promover melhorias nas condições de acesso e inclusão e o aumento do número de estudantes com deficiência. Eleito diretor-geral, ele assume o cargo no dia 5 de julho.

Confira a entrevista 

Conte um pouco de sua trajetória. Como você chegou nesse lugar? 

Sou carioca, do Rio de Janeiro. Eu fui reprovado em quase 10 processos seletivos no Rio de Janeiro para o mestrado, justamente por conta da minha dicção. Expliquei isso para o meu orientador, que eu errava ao falar por conta da surdez, e não por falta de conhecimento. Aí, ele foi bastante empático e me ajudou a preparar um projeto, e eu passei.

Eu demorei quase nove anos para terminar o doutorado, em vez de quatro. Enquanto eu não tivesse o português na ponta da língua, meu orientador não me deixava sair da universidade, porque queria que eu estivesse em grau de competição com pessoas que não tivessem deficiência. E deu certo. Foi importante conquistar essa autonomia.

E como você veio para o Rio Grande do Sul?  

Eu estudei toda a minha vida na rede pública de educação do Rio de Janeiro, e não tinha acessibilidade. Intérprete de libras, monitores, atendimento especializado, tudo isso é muito recente na inclusão do país, é de 2003 para cá. Lá em 2003, quando eu ingresso na universidade, teve uma professora que foi uma segunda mãe para mim. Ela me levou para fazer o tratamento de fonoaudiologia, os aparelhos auditivos, até a busca pelo mestrado. Ela me auxiliou a passar na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde fiz mestrado e doutorado.

Então, eu sempre tive pessoas que nunca me abandonaram, nunca largaram a minha mão e acreditaram no processo. Cheguei no RS em 2018. Meu sonho era passar na rede federal. Eu tentei o concurso no RS, em Rondônia e São Paulo. Aqui eu passei em primeiro lugar, pelas cotas.

Foi um concurso extremamente concorrido, que tinha quase 400 pessoas para uma vaga na área de História. Havia cinco vagas reservadas para pessoas com deficiência, e eu fui um dos selecionados. Sou professor desde 2018 no IFSul de Sapiranga, e agora assumo como diretor.  

Quais medidas e políticas de inclusão na educação tiveram sua contribuição? 

No instituto federal, contribuí no sentido de sempre ser aquele cara que bate na porta e exige a questão da acessibilidade. A nível institucional, eu contribuí para a construção da resolução 366/2023, que aprovou o regulamento dos processos inclusivos para estudantes com necessidades educacionais especiais no IFSul.

O ano de 2023 repensa toda a política de acessibilidade para pessoas com deficiência na nossa instituição. Hoje, nós temos um quantitativo maior de pessoas com surdez. Eles se identificam com um professor surdo.

Nós temos mais de seis intérpretes de Libras no campus. Fora no instituto, estou sempre escrevendo artigos sobre a questão da pessoa com deficiência, além da contribuição na UFRGS. Vou continuar dando aula na universidade, orientando dissertações e teses na área de inclusão, das ações afirmativas.

Pela minha atuação nessa pauta, fui convidado para aperfeiçoar a política de inclusão da instituição. Em nível de Estado, venho participando de várias comissões e contribuindo para a criação de comissões de pessoas com deficiência para os municípios.

Quais obstáculos persistem, no que diz respeito à educação de pessoas com deficiência no Estado

Os desafios são muitos. Quando cheguei ao Rio Grande do Sul eu levei um susto. Minha primeira experiência foi quando eu fui em uma emergência em Porto Alegre. Avisei que eu era surdo e eu estava sem aparelho auditivo, sem acompanhante e todo mundo gritando. Fiquei quase quatro horas em uma emergência de um hospital e as pessoas não observaram que o surdo não teria como escutar.

Então, é necessário ter pelo menos painéis que chamem a pessoa pelo nome, ou ir até a pessoa e tocar no ombro. A acessibilidade ainda era muito pequena em 2018. Depois disso, melhorou, hoje temos mais estrutura.

Mas ainda temos a questão da acessibilidade no trem, é sempre aviso sonoro, ainda faltam painéis visuais. Na educação, o que mais falta é investimento do governo, tanto federal, quanto estadual, em termos da importância da acessibilidade.

Temos que estar fazendo milagres a todo momento. Lutando por sala de recursos, mais profissionais para poder trabalhar, porque cada tipo de deficiência exige um profissional diferente. Atendimento educacional especializado, intérprete de Libras, apoio escolar. A inclusão só vai ser uma prática efetiva quando for uma prática prioritária de investimento dos governos.

Tenho consciência de que minha trajetória não representa a regra, nós ainda somos exceção.

VALTER LENINE FERNANDES

Como podemos construir um futuro com mais oportunidades para as pessoas com deficiência? 

Precisamos promover mais oportunidades. A primeira barreira para lidar com as pessoas com deficiência é a barreira atitudinal. São as barreiras que dizem respeito às atitudes. Ou seja, enxergar a pessoa com deficiência como se ela fosse uma pessoa com limitações.

Dessa forma, você já coloca aquela pessoa num lugar apenas de deficiente. Por isso, precisamos trazer essa pauta para a discussão. O segundo desafio são as barreiras físicas, que são as barreiras arquitetônicas, a falta de acessibilidade. Isso nós vamos vencer quando tivemos um olhar mais empático com a comunidade.

Tenho consciência de que minha trajetória não representa a regra, nós ainda somos exceção. Mas acredito que mostrar como ações afirmativas e políticas públicas têm impacto real pode ajudar a construir um futuro de mais inclusão e oportunidades.

Fonte: GauchaZH

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