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Em seu primeiro dia de aula, a menina de 13 anos chega acompanhada de um homem à escola nova, em um bairro de São Paulo, em 2016. Ele se apresenta como responsável pela adolescente e faz uma série de imposições.

“Eu sou pastor e cuido dos interesses da família dela. Estou conversando porque quero que você me conte caso algum garoto se aproximar dela. Quero saber se tem menino mandando carta, essas coisas. Como ela foi abusada em outra escola, eu tenho essa preocupação”, disse. A escola é um colégio regular que possui alunos de inclusão, entre eles os que aprendem a Língua Brasileira de Sinais.

A intérprete Júlia* conta que estranhou a abordagem e respondeu de forma protocolar. “Em primeiro lugar, sou intérprete e não me reporto a você. Se você tiver alguma dúvida, pode procurar a direção da escola”. O homem desconversou, mas tentou abordá-la sobre o assunto outras vezes.

“Mas eu não dei abertura”, disse a educadora em entrevista à BBC News Brasil.

Um mês depois, ela descobriu durante uma aula de libras que o homem abusava, quase diariamente, da garota. Ele pagava uma mensalidade de R$ 1.500 aos pais da adolescente para que ela dormisse na casa dele alguns dias por semana. Tudo revelado pela menina, segundo Júlia, em poucas semanas de aula.

Um levantamento organizado pelo Instituto Liberta, uma ONG que atua há quatro anos no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, aponta que o Brasil registra cerca de 500 mil casos de exploração sexual infantil por ano — quando um adolescente de 14 a 18 anos faz sexo com um adulto em troca de algo. O país só tem menos casos que a Tailândia.

Mais de quatro meninas são estupradas por hora no Brasil, segundo os dados do último balanço do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2019.

Sinais
Mas até ter certeza do que ocorria, a intérprete ficou atenta a uma série de sinais. Especialistas em educação e psicologia infantil disseram à reportagem que tal atitude é essencial para descobrir abusos. Júlia relatou que logo percebeu que a adolescente apresentava uma profunda tristeza desde os primeiros dias de aula, chamando a atenção pela fala desconexa e uma aparente angústia.

“Ela era uma adolescente muito bonita. Chamava muito a atenção dos meninos, mas por ser muda e estar num ambiente de maioria ouvinte, ocorre uma abertura maior com o intérprete, que precisa ter essa sensibilidade e construir um elo de confiança com o aluno”, conta.

Aos poucos, a intérprete se aproximou da menina e identificou alguns desvios de comportamento. Ela lembra ter notado que a garota mentia em algumas situações, por exemplo ao justificar ausências, e dava sinais de que queria contar algo. Durante um mês, a adolescente registrou mais faltas do que presenças na escola.

Questionada, ela justificou as ausências dizendo que dormia muito tarde por conta de cerimônias religiosas que participava na igreja, na qual o homem que a levava para a escola era pastor.

Com mais intimidade, a adolescente então perguntou para a professora o que ela achava de um homem se relacionar com uma garota. E logo revelou que costumava dormir na casa do pastor, lembra Júlia. A sós, pois a mulher do líder religioso dormia no quarto ao lado.

“Aquilo mexeu muito comigo porque era a mesma religião que a minha. Comecei a entrar em parafuso. Eu desconfiava desde o começo, mas gradativamente ela começou a me contar que ele a levava para passear, como um casal”, contou Júlia.

O homem, enquanto isso, continuava insistindo para que a professora fizesse relatórios do comportamento da estudante.

“Ele queria saber cada passo dela, como um gavião. É diferente de um pai ou responsável preocupado. Por que uma menina que tem pai e mãe precisa de um homem para levá-la para cortar o cabelo, levar para viajar?”, questiona.

Júlia disse à BBC que então avisou o diretor da escola e eles descobriram que o documento de tutela que o pastor tinha entregue na escola era falso.

Certo dia, conta a intérprete, o pastor levou a mulher dele à escola. A esposa parecia uma pessoa abatida, que olhava sempre para o chão, era inexpressiva e tinha uma postura corporal submissa ao marido.

A menina começou a confiar cada dia mais na intérprete e contar detalhes da rotina com o pastor.

“Ela queria me dizer algo de forma indireta, mas sem dizer claramente: ‘Eu transo com ele’. A intenção era pedir socorro, mas por outro lado deixava claro que gostava do conforto proporcionado por aquela situação. Ela ganhava roupas e dinheiro, e isso fazia diferença na vida dela porque tinha irmãos e era pobre. Isso criava um conflito na mente dela”, relata.

A intérprete disse que a garota era levada de carro todos os dias pelo pastor. Ao ser questionada sobre a mulher dele, a garota respondia que ela praticamente não existia para o marido e que a via chorar frequentemente.

A gota d’água para Júlia foi quando a aluna revelou que, além de acompanhar a garota à consulta médica como se eles formassem um casal, o homem ainda orientava a adolescente sobre como ela poderia se prevenir de uma gravidez indesejada e manter cuidados íntimos. No mesmo dia, Júlia acionou o Conselho Tutelar.

A mãe da garota foi chamada e, segundo a intérprete, ficou indignada com a denúncia e tentou agredi-la. “Disse que eu estava inventando. A menina também negou tudo para a delegada, que percebeu e pediu exames de corpo de delito que comprovaram o abuso.”

Fonte: BBC News

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